Agostinho e Pelágio - John Piper

A oração de Agostinho — “Concedeste porque tu ordenaste, e ordenaste o que tu desejaste” — ofendeu profundamente Pelágio, seu adversário. Isso implicava que Deus não apenas disse ao ser humano o que ele devia fazer, em que crer e a quem obede­cer, mas também concedeu-nos a habilidade para fazer o que ele nos ordena. Isso parecia, para Pelágio, minar a responsabilidade humana e dar diretamente a Deus a decisão prévia de quem creria e não creria.
Em 2Crônicas 30:1-12, temos um exemplo marcante do tipo de Escritura que formou a visão de Agostinho sobre como Deus opera. Ezequias se tornara rei num trono que fora ocupado por muitos outros reis perversos. "Fez ele o que era reto perante o Senhor" (2Cr 29:2). A restituição da Páscoa foi um exemplo dis­so. Ela deixara de ser celebrada muito tempo. No capítulo 30, Ezequias envia mensageiros "por todo o Israel e Judá", incluindo Efraim e Manasses, conclamando o povo a vir ao Templo do Se­nhor, em Jerusalém, para comemorar a Páscoa (30:1).
Nas cartas que Ezequias enviou às tribos, a bênção de Deus está estritamente condicionada a como as pessoas respondem. Aqui está o que as cartas dizem:
Partiram os correios com as cartas do rei e dos seus príncipes, por todo o Israel e Judá, segundo o mandado do rei, dizendo: Filhos de Israel, voltai-vos ao Senhor, Deus de Abraão, de Isaque e de Israel, para que ele se volte para o restante que escapou do poder dos reis da Assíria. Não sejais como vossos pais e como vossos irmãos, que pre­varicaram contra o Senhor, Deus de seus pais, pelo que os entregou à desolação, como estais vendo. Não endureçais, agora, a vossa cerviz, como vossos pais; confiai-vos ao Senhor, e vinde ao seu santuário que ele santificou para sempre, e servi ao Senhor, vosso Deus, para que o ardor da sua ira se desvie de vós. Porque, se vós vos converterdes ao Senhor, vossos irmãos e vossos filhos acharão misericórdia pe­rante os que os levaram cativos e tornarão a esta terra; porque o Senhor, vosso Deus, é misericordioso e compassivo e não desviará de vós o rosto, se vos converterdes a ele.
2Crônicas 30:6-9 (grifo do autor)

Observe cuidadosamente como as palavras em itálico dessa passa­gem condicionam a bênção de Deus à resposta humana: "se vós vos converterdes ao Senhor... Se vos converterdes a ele". Muitas pesso­as lêem esse tipo de exigência divina e concluem claramente que Deus condiciona as bênçãos a nossa autodeterminação. Alguns ad­mitirão que Deus pode oferecer-nos alguma ajuda para nos encora­jar a obedecer-lhe, uma medida de "graça preventiva" (graça que precede nossa obediência). Eles dizem: "Essas condições no versí­culo 9 (se vós vos converterdes ao Senhor... Se vos converterdes a ele), não podem ser reais, já que decididamente o próprio Deus gera as condições que devem ser cumpridas" (alguns, como os teístas abertos, diriam que as condições não são reais, se o próprio Deus sabe previamente o que vamos fazer).
Isso parece razoável para muitas pessoas. Quando Deus diz: "Se você fizer isso, então eu o abençoarei", parece razoável que ele espe­re ver o que faremos através de nosso poder de decisão. Assim, ele poderá agir baseado não no que ele faz, mas naquilo que fazemos independentemente de seu controle decisivo. Entretanto, o pro­blema com essa conclusão aparentemente "razoável" é que ela con­tradiz os versículos seguintes. Quando a carta de Ezequias chega ao povo de Israel e de Judá, eis o que acontece:
Os correios foram passando de cidade em cidade, pela terra de Efraim e Manasses até Zebulom; porém riram-se e zombaram deles. Toda­via, alguns de Aser, de Manasses e de Zebulom se humilharam e foram a Jerusalém. Também em Judá se fez sentir a mão de Deus, dando-lhes um só coração, para cumprirem o mandado do rei e dos príncipes, segundo a palavra do Senhor.
2Crônicas 30:10-12

O versículo 12 é chocante para a mente "razoável" que conclui dos versículos 6 a 9 que as condições dadas por Deus implicam que ele esperaria e observaria se as pessoas satisfazem tais condições por seu poder de decisão. O versículo 12 diz que a mão de Deus está sobre Judá para lhes dar um coração que fizesse o que o rei Ezequias estava ordenando pelo Senhor. A palavra "também", na frase "Tam­bém em Judá se fez sentir a mão de Deus", implica que a obediência humilde de Aser, Manasses e Zebulom (e não apenas Judá) se devia também à mão do Senhor.
O interessante aqui é que o escritor bíblico não sente nenhuma inconsistência ou contradição em dizer que a obediência é uma con­dição que as pessoas devem cumprir e que essa obediência é uma obra que Deus produz no coração delas.
Isso é o tipo de coisa que Agostinho viu em muitos lugares da Bíblia, e por que ele orou: "Concedeste porque tu ordenaste, e ordenaste o que tu desejaste".
Significa que você não pode simplesmente tomar todas as con­dições da Bíblia, juntá-las e usá-las como argumento de que cabe apenas ao homem, através de seu poder de autodeterminação, dar um veto definitivo à vontade soberana de Deus. Devemos afirmar as condições expressas na Palavra tão veementemente quanto a Bí­blia o faz (se você retornar ao Senhor, então ele o salvará). Entretan­to, devemos também nos recusar a admitir a aparente conclusão de que a pessoa tem total auto-suficiência para cumprir tais condi­ções. A Bíblia ensina duas coisas: muitas das bênçãos de Deus de­pendem de nossa resposta de fé; e o próprio Deus é que finalmente nos capacita a responder com fé e obediência.
Oramos a Deus, portanto, para obter capacitação naquilo que ele nos chama, e a outros, a fazer. De fato, eis exatamente por que a oração é necessária. Somente Deus pode fazer realizar o necessá­rio. Somos tão pecadores e rebeldes, tão difíceis e relutantes, que se deixarmos tais coisas por nossa conta, cairemos exatamente no mesmo erro das pessoas de 2Crônicas 30:10: "riram-se e zomba­ram" deles.
Quão importantes e práticas são as doutrinas da soberania de Deus para nossa vida diária! Se não soubermos o que Agostinho sabia e o que 2Crônicas nos ensina, como poderemos aplicar nossos desejos e esforços diligentes na santidade e no ministério, sem nos tornarmos moralistas autoconfiantes e presunçosos? E sabido que devemos operar nossa salvação com tais esforços, e isso é dom da graça de Deus, que nos mantém constantes em nosso clamor pela graça capacitadora e vigorosos em nossa obra (Pp 2:12,13). Quan­to mais poderíamos dizer com o apóstolo Paulo: "Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo" (ICo 15:10). Trabalhei duro, mas não eu. E isso que 2Crônicas e Agostinho têm a nos ensinar.
Senhor, oro para que nos enchas com esperança, alegria e a expectativa de que tens o poder de colocar tua mão sobre nós e conceder-nos a vontade de fazer o que ordenas. O Senhor tem
deixado claro: somos responsáveis por fazer o que nos dizes.
Mas sabemos que em nós não há vontade defazê4o. Então, clamamos como Agostinho: "Concedeste porque tu ordenaste, e
ordenaste o que tu desejaste". Não nos deixes entregues a nós
mesmos. Tem misericórdia de nós. Em nome de Jesus. Amém.

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