O diácono esperou até o fim.
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Ele era bastante jovem quando foi promovido a diácono em sua igreja. Adorava prestar serviços por horas a fio no posto de sentinela à porta do velho templo. Aquele era um local muito barulhento, e naquele entre e sai de gente conversando, sem o mínimo de respeito à Palavra do pregador, em sua imaginação ele parecia estar lutando contra as tropas estrangeiras do mundo de Lúcifer. Com sua velha e rota Bíblia em punho, via-se armado como se estivesse à espera de um inimigo oculto, que poderia aparecer a qualquer momento.

Durante anos viveu solitariamente naquele posto de diácono-porteiro, mas sempre pensando um dia galgar o posto máximo da hierarquia eclesiástica. Doara a sua vida na vigilância contra um inimigo que nunca chegara a conhecer. Vivia enfim uma vida petrificada numa agenda monótona de dias terrivelmente iguais. Não se dava conta que ia envelhecendo dentro de uma concha silenciosa, numa espécie de obsessão disciplinar, castradora dos sentimentos mais puros e estranhamente reprimidos pelo medo imaginário que o deixava sempre à espreita de um estranho a invadir os seus domínios sagrados.

Andava para lá e para cá, varando manhãs ensolaradas, tardes de ventania e noites gélidas, repetindo os mesmos gestos, marchando pelos mesmos caminhos, buscando com os olhos de assombração uma utópica imagem que pudesse afugentar com os versículos chavões previamente marcados em vermelho no seu Sagrado livro de capa preta. Alimentou, por anos a fio, a esperança de que chegaria o dia em que pudesse, afinal, demonstrar a sua valentia contra o inimigo e assim poder subir na carreira eclesiástica, profetizada e escolhida no seu tempo de menino pela sua velha mãe. Vivia enfim numa esperança mórbida, na expectativa de uma batalha imaginária que poderia levá-lo a um destino de glórias.

Envelheceu o pobre diácono sem perceber que paulatinamente dissolvera os seus dias, os seus anos, numa repetição contínua de atos mecânicos, insossos, sem alegria, numa atmosfera de inexorável obsessão. E assim, congelado no tempo, não mais sabia se ainda estava vivendo ou se morrera. Renunciara a alegria de viver para obedecer de maneira fiel a um “rito” que o transformou em um autômato a serviço da igreja.

O moço diácono transformado agora num velho diácono passava em revista a sua vida. A profissão da eterna espreita de um inimigo o engessou num invólucro impermeável e estéril ao gozo, transformando a sua vida numa interminável expiação. Erigiu então dentro do seu próprio ser uma fortaleza, fundamentada sobre o “temor”, que se nutria das severas penitências pelas faltas cometidas. Passou toda a sua vida numa atmosfera austera e sinistra à espera de um inimigo, que nunca apareceu aos seus olhos, nem nunca poderia aparecer, pois era cego para ver dentro de si. Vivendo sempre uma expectativa de guerra com as forças diabólicas.

O pobre diácono envelheceu no seu posto, tentando expiar a sua culpa, com obsessão inesgotável contra um ilusório inimigo, tal qual um militar que monta guarda, verifica diuturnamente as armas, prepara os canhões, limpa o telescópio, e mantém-se em vigília, arrebatado pelo que poderia aparecer no horizonte, sem nunca suspeitar que estivesse fiscalizando a sua própria sombra oculta nos porões do seu inconsciente.

Ali no seu leito de dor, via a sua estrada rumo ao posto maior da Eclésia, terminada. No seu quarto, quando envolto pelas trevas da noite, parecia ouvir os doces hinos de sua igreja, entre os arpejos de um violão, e isso fazia então nascer dentro de si uma nesga de esperança, sem saber que a batalha final estava tão perto.

Em sonhos ouvia uma voz constante dizer ao seu ouvido: “Coragem meu velho diácono, esta é a sua última cartada, vá ao encontro da morte como um soldado. Mesmo que ninguém cante louvores para ti, mesmo que ninguém te chame de Pastor. Mesmo com os teus sonhos transformados em desejos rotos e amarguras, és bravo, por ainda esperar”.

O pobre diácono mal conseguia respirar, mas ainda pensava: “e se dentro de alguns minutos, dentro de uma hora, alguém viesse ungi-lo como pastor?”.

Nessa noite a voz lhe soou ao ouvido pela última vez: “meu querido e velho diácono, mesmo se não houver mais os cânticos para te consolar e, ao contrário dessa fria noite, vierem névoas fétidas, tudo será o mesmo. O que importa já foi feito, não podem mais enganá-lo".

Na escuridão densa do seu quarto, ninguém o vê, mas ele parece sorrir, antes de dar o seu último suspiro.

Ensaio por Levi B. Santos
Guarabira, 18 de março de 2009
Fonte: [ Ensaios & Prosas ]

. http://bit.ly/9w8PQj

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