Reformando o Culto
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Por: João Calvino

Com relação à adoração, a próxima acusação dos nossos inimigos, tem a ver com o fato de que, abolindo as observâncias pueris, que só levam à hipocrisia, nós adoramos a Deus de forma mais simples. Que de maneira alguma detratamos a espiritualidade da adoração é atestado pelos fatos. Pelo contrário, tendo a adoração em grande medida se degenerado, nós a restauramos em sua forma primitiva. Vejamos se a ofensa desferida contra nós é justa. Em termos doutrinários, eu sustento que estamos alinhados com os profetas; pois além da idolatria, não havia nada que eles reprovassem mais do que a falsa imaginação de que a adoração a Deus consistia de mera formalidade de ritos. Pois qual era o fundamento das suas declarações? Que Deus não habita e não atribui valor às cerimônias como um fim em si mesmo, mas que observa a fé e a verdade no coração; e que a única finalidade para a qual Ele as ordenou, e as aprovou, é que sirvam apenas de mero exercício da fé, da oração e do louvor. Os escritos de todos os profetas estão repletos deste conceito e não tenho observado que haja outra coisa que os tenha feito se ocupar mais.

Agora, não se pode, sem arrogância, negar que quando os reformadores apareceram, o mundo se encontrava, mais do que nunca, afligido por este tipo de cegueira. Foi então absolutamente necessário instar com os homens, da mesma forma que os profetas fizeram, e arrancar deles como pela força, a arrogância de imaginarem que Deus pudesse ficar satisfeito com estas cerimônias vazias, como crianças que se satisfazem com shows. Havia uma necessidade urgente de uma doutrina espiritual da adoração de Deus. Doutrina essa que se desvanecera das mentes dos homens. Que estas duas coisas foram fielmente realizadas por nós no passado e ainda agora realizamos, tanto nossos escritos, como os sermões claramente o atestam.

Censurando as cerimônias em si, e abolindo grande parte delas, confessamos que há algumas diferenças entre os profetas e nós. Eles censuraram seus compatriotas por confinarem a adoração na exterioridade das cerimônias, mesmo se tratando de cerimônias que foram instituídas por Deus mesmo. Nós rejeitamos que a mesma honra seja dada às invenções frívolas inventadas pelo homem. Eles, enquanto condenavam a superstição, deixaram intocadas as múltiplas cerimônias que agradou a Deus instituir, e que foram úteis e apropriadas para o tempo da tutelado; nosso trabalho tem sido corrigir numerosos ritos, que fazem a adoração, tanto andar de volta ao erro,, como de volta ao abuso, e além do mais ficar completamente fora de tempo. Pois, se quisermos colocar tudo numa tremenda confusão é só perder de vista a distinção entre a velha e a nova dispensação e o fato de que as cerimônias e suas observâncias, que eram úteis debaixo da Lei, agora, no entanto, são não somente supérfluas, como viciosas e absurdas.

Quando Cristo estava ausente e não havia ainda se manifestado, as cerimônias, que eram sombras Dele, nutriam a esperança do Seu advento no coração dos crentes. Mas agora que Sua glória está presente e visível, elas só o obscurecem. E nós vimos o que Deus mesmo fez. Pois estas cerimônias, que ordenou por um tempo, Ele agora as queimou para sempre. Paulo explica a razão: primeiro, desde que o corpo se manifestou em Cristo, o tipo, é claro, foi retirado; e segundo, é que Deus se agradou agora de instruir sua Igreja de forma diferente. (GI 4:5; CI 2: 4-14 e 17) Tendo então, Deus libertado Sua Igreja do fardo imposto a ela, eu pergunto, pode alguma coisa ser mais perverso do que os homens colocarem um novo fardo no lugar do velho? Tendo Deus prescrito certa economia, quão presunçoso seria estabelecer algo contrário e abertamente repudiado por Ele?

Mas o pior de tudo é que apesar de Deus, tão freqüente e severamente proibir todo tipo de adoração prescrita pelo homem, a única adoração prestada a Ele, consistia de invenções humanas.

Baseado em que, então, os nossos Inimigos vociferam que nesta matéria, lançamos a rei igião ao vento? Primeiro, não estendemos um dedo sequer, senão naquilo que Cristo mesmo considerou de nenhum valor, quando declarou que era vã a adoração a Deus pela tradição humana. A coisa poderia ser mais tolerável, se as conseqüências fossem apenas um desperdício de energia dos homens, por exercerem uma adoração sem valor. Mas, o que tenho observado, é que em muitas passagens, Deus proíbe, qualquer nova adoração, não sancionada pela Sua Palavra; desde que ele declara que se sente terrivelmente ofendido com a presunção dos que inventam tais adoração, e ameaça com severa punição. Fica claro então que a reforma que introduzimos era requerida e muito necessária.

Eu não estou desapercebido, de quão difícil é persuadir o mundo de que Deus rejeita e mesmo abomina tudo relacionado à sua adoração, que provém de invenções por parte da razão humana. O engano nessa matéria, deve-se à várias causas; "Todo mundo pensa alto a respeito de si mesmo", como diz velho provérbio. Sendo assim, o que produzimos com nossa própria mente, nos deleita, e além do mais, como Paulo admite, essa adoração fictícia, freqüentemente manifesta alguma aparência de sabedoria (Col 2:23). Então, como na maioria das vezes, se apresenta com um esplendor exterior que enche os olhos e agrada muito mais a nossa carne natural, do que aquela que Deus aprova e requer, e que não tem tanta ostentação. Mas não há nada que cegue tanto o entendimento dos homens e os engana no entendimento desse assunto, do que a hipocrisia. Pois, enquanto é devido ao verdadeiro adorador entregar-se de coração e mente, os homens estão sempre desejando inventar um modo de servir a Deus de forma totalmente diferente daquela que foi descrita, seu objetivo é apresentar a Ele um certo corpo de observâncias, e resguarda a mente para eles próprios. Além do mais, eles imaginam que quando impõem a Ele, uma pompa externa, conseguem, por este artifício, evadirem-se de entregarem-se a si próprio. Esta é a razão, porque se submetem a inumeráveis observâncias, que miseravelmente os fadiga sem medida e sem fim, e os faz preferir escolher vagar em um perpétuo labirinto, do que adorar a Deus, simplesmente, em espírito e verdade.

Fonte: Revista Os Puritanos, Ano XI – nº 02 – Abril/Maio/Junho de 2003. Páginas 22 e 23.
Via: [ Eleitos de Deus ]

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