A Cegueira dos Ímpios - João Calvino

Mas se o nosso evangelho está encoberto (2Co 4.3,4). Teria sido fácil despejar escárnio na alegação de Paulo de que a sua pregação era muitíssimo clara, porquanto ela contava com muitos oponentes. Porém, Paulo enfrenta esta acusação com implacável autoridade, ameaçando todo aquele que não reconhecesse o poder do seu evangelho e alertando a todos de que este é um sinal de reprovação e morte. É exatamente como se dissesse: "Se alguém afirma que não reconhece a manifestação de Cristo, na qual me glorio, por esse mesmo fato prova claramente ser ele mesmo um réprobo, porque a sinceridade de minha pregação é pública e claramente compreendida por todos quantos têm olhos para ver." Aqueles para quem o evangelho está oculto devem, pois, estar cegos e carentes dos próprios vestígios de entendimento racional. A conclusão é que a cegueira dos incrédulos de modo algum denigre a clareza de seu evangelho; o sol não é menos resplendente só porque os cegos não podem perceber sua luz.

Alegar-se-á que isto se aplica igualmente à lei, porquanto em si mesma ela é "lâmpada para guiar os nossos pés" (SI 119.105), e "iluminar os nossos olhos" (SI 19.8), e está oculta somente para aqueles que perecem. A minha resposta é que, enquanto Cristo estiver associado à lei, o brilho do sol penetra através das nuvens, de modo que os homens têm luz suficiente para o seu uso; mas onde Cristo é dissociado da lei, não fica nada senão trevas ou, antes, uma falsa aparência de luz que ofusca, em vez de iluminar os olhos dos homens.

O fato de que ele ousa considerar como réprobos a todos quantos rejeitam sua doutrina é evidência de grande segurança, mas é certo que todos quantos desejam ser considerados ministros de Deus possuam semelhante segurança, de modo que, com uma consciência intrépida, não hesitam em intimar aos que se opõem ao seu ensino a comparecerem diante do trono do juízo divino para que recebam ali ajusta condenação.

Em quem o deus deste mundo. Paulo está querendo dizer que não acredita que seria surpreendido pela perversa obstinação de seus oponentes. "Eles não conseguem ver o sol ao meio-dia", diz ele, "porque o diabo cegou seu entendimento." Ninguém em são juízo teria alguma dúvida de que o apóstolo, aqui, se refere a Satanás. Hilário, que se viu obrigado a tratar com os arianos que abusavam desta passagem em apoio de seu ponto de vista de que Cristo era um deus, ainda que negassem sua genuína divindade, torcem o texto para significar que foi Deus quem cegou o entendimento deste mundo. Crisóstomo, mais tarde, seguiu esta tradução a fim de não propiciar aos maniqueus sua visão dualística de dois princípios primários. Por que Ambrosio também a aceitou não fica claro, mas a razão de Agostinho foi a mesma de Crisóstomo, porque ele também foi envolvido na disputa com os maniqueus. Este é um clássico exemplo do que pode suceder no calor de uma controvérsia, porque, se todos aqueles homens tivessem lido as palavras de Paulo com uma mente tranqüila e isenta, jamais teria ocorrido que viessem a torcer tal texto para que o seu significado fosse assim forçado. Mas, ao serem duramente pressionados por seus oponentes, ficaram mais ansiosos em refutá-los do que em explicar Paulo. 

Porém, que necessidade havia para tal ansiedade? Era um subterfúgio infantil, porque os arianos argumentavam que, em razão de o diabo ser chamado de deus deste mundo, a palavra Deus, aplicada a Cristo, não expressa a verdadeira, eterna e única divindade. Paulo diz alhures que "muitos são chamados deuses" (1 Co 8.5), e Davi declara que "os deuses das nações são demônios" (SI 96.5). Portanto, quando o diabo é chamado deus em razão de ele ter domínio sobre os homens e ser adorado por eles no lugar de Deus, como pode isto detrair de alguma forma a dignidade de Cristo? Enquanto que, para os maniqueus, este título não empresta qualquer feição ao seu ponto de vista mais do que quando o diabo é chamado o príncipe deste mundo. Assim, não há razão por que devemos ter receio de interpretar esta passagem como aplicável ao diabo, porque isso pode ser feito sem qualquer risco.

Porque, se os arianos sustentam que a essência divina de Cristo não pode ser provada em ser-lhe dado o nome de Deus não mais do que a essência divina de Satanás pode ser provada em ser ele chamado um deus, esta tergiversação é facilmente resolvida. Pois Cristo é chamado Deus absolutamente sem qualquer frase qualificativa, e ele ainda é chamado "Deus bendito para sempre". Ele é chamado Deus que existiu desde antes da criação do mundo. Todavia, o diabo é chamado o deus deste mundo exatamente na mesma forma como baal é chamado o deus daqueles que o adoram, ou o cão é chamado o deus do Egito. Os maniqueus, em defesa de seus pontos de vista pervertidos, como já expus, dependem de outras passagens da Escritura, além desta, porém não é difícil, tampouco, refutá-los. 

O seu argumento não se restringe ao nome do diabo, mas se estende ao seu poder. Em razão de ser atribuído a Satanás poder de cegar e domínio sobre os crentes, então deduzem que ele, por sua própria habilidade, é o autor de todo o mal, de modo que não está sujeito ao comando de Deus - como se a Escritura, em muitos passos, não chamasse os demônios de ministros de Deus, tanto quanto o são os anjos celestiais, ainda que num sentido mui diverso. Pois assim como os anjos celestiais são ministros das bênçãos de Deus para a nossa salvação, também os demônios executam a Sua ira. Portanto, os anjos celestiais são chamados principados e poderes, mas só porque exercem o poder que Deus lhes conferiu. Da mesma forma, Satanás é o príncipe do mundo, não porque tenha ele conferido a si mesmo esse poder principesco ou obtido o mesmo por seu próprio direito ou seja capaz de exercê-lo por sua própria vontade, mas ele o possui só até onde o Senhor lho permite. Assim a Escritura não só menciona o bom Espírito de Deus e os bons anjos, mas também menciona as maus espíritos de Deus. Assim temos em 1 Samuel 16.14: "Tendo-se retirado de Saul o Espírito do Senhor, da parte deste um espírito maligno o atormentava." Bem como em Salmo 78.49 lemos do castigo infligido pela instrumentalidade de "anjos portadores de males".

Voltando à passagem em pauta, cegar os incrédulos é uma obra comum a Deus e a Satanás, mas o poder que cada um deles possui não é o mesmo, nem a mesma a maneira como é ele funciona. Ainda não disse nada sobre a maneira, mas a Escritura ensina que Satanás cega os homens não só com a permissão de Deus, mas sob seu comando, para aplicar sua vingança. Assim,  cabe foi enganado por Satanás (1 Rs 22.21), porém Satanás não podia ter feito isto de moto próprio. Tendo oferecido seus préstimos a Deus para fazer o mal, ele foi enviado para ser um espírito mentiroso na boca de todos os profetas (1 Rs 22.22). Portanto, diz-se que Deus é quem cega os homens, porque, tendo-nos privado do correto uso de nossas mentes, e da luz de seu Espírito, ele nos entrega ao diabo para nos reduzir a um estado mental reprovável e lhe dá o poder de nos iludir e assim infligir justa vingança sobre nós através do ministério de Sua ira.

Portanto, Paulo está querendo dizer que todo aquele que não reconhece que o seu ensino é a pura verdade de Deus, está possuído do diabo, porque é mais duro chamá-lo de escravo do diabo do que atribuir a sua cegueira ao juízo de Deus. Um pouco antes ele julgara tais pessoas como dignas de destruição, e agora acrescenta que a única razão por que estão perecendo é que por sua própria descrença trouxeram ruína sobre si mesmas.

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