Ele Morreu pelos Ímpios - João Calvino

Cristo morreu pelos ímpios (Rm 5.6-9) . Em minha tradução, não me aventurei conceder-me a liberdade de traduzir esta frase: "quando nós ainda éramos fracos", embora tenho preferido este sentido. O presente argumento procede do maior para o menor, e Paulo, em seguida, o adotará mais extensivamente. Embora ele não componha os liames de seu discurso de maneira distinta, a irregularidade de sua estrutura não afetará o significado. "Se Cristo", diz ele, "teve misericórdia do ímpio; se reconciliou seus inimigos com o Pai; se realizou isto pela virtude de sua morte, então agora, muito mais facilmente, os salvará quando forem justificados, e guardará em sua graça àqueles a quem restaurou à graça, especialmente pelo fato de que a eficácia de sua vida é agora acrescentada à sua morte."

Há intérpretes que defendem a tese de que o tempo de fraqueza significa aquele período em que Cristo começou a manifestar-se ao mundo; e consideram aqueles que eram ainda fracos como aqueles que, em sua infância [espiritual], viviam sob a tutela da lei. A expressão, contudo, sustento eu, se refere ao próprio cristão crente, e o tempo referido é o período que precede a reconciliação de cada um com Deus. Todos nós nascemos filhos da ira, e somos mantidos sob esta maldição até que nos tornemos partícipes de Cristo. Pela expressão, aqueles que são fracos ele quer dizer aqueles que não possuem nada em si mesmos senão pecado, pois imediatamente a seguir ele os chama de ímpios. Não há nada fora do comum considerar fraqueza neste sentido, visto que em 1 Coríntios 12.22 ele chama as partes menos nobres do corpo de frágeis; e em 2 Coríntios 10.10, ele chama sua própria presença física é fraca visto não possuir qualquer dignidade. Recorreremos a este significado um pouco mais adiante. Quando, pois, éramos fracos ou seja, quando éramos completamente indignos e desqualificados para merecermos a consideração divina, nesse mesmo tempo Cristo morreu em favor dos ímpios. A fé é o início da piedade, à qual eram estranhos todos aqueles por quem Cristo morreu. Isto é também válido para os antigos pais, os quais obtiveram justiça antes da morte de Cristo, pois este benefício eles o extraíram da morte do Cordeiro que ainda estava por vir.

7.        Dificilmente alguém morreria por um justo. A razão me compele a expor a partícula ( gar ) em sentido afirmativo ou declarativo, antes que causativo, ficando assim o sentido: "De fato é uma ocorrência muito rara entre homens a morte de alguém em favor de um justo, embora ocasionalmente seja possível acontecer. Mas, mesmo admitindo que tal coisa seja possível, não se achará ninguém que esteja disposto a morrer por um ímpio, como Cristo o fez." Deste modo, a passagem emprega uma comparação a fim de ampliar o que Cristo fez por nós, visto não existir no seio da humanidade um exemplo tal de bondade como a que Cristo nos demonstrou.

Mas Deus prova o seu amor para conosco. O verbo aqui  contém mais de um significado. O mais adequado aqui é o que denota confirmação. Não é o propósito do apóstolo despertar-nos para ações de graças, e, sim, estabelecer a confiança e a segurança de nossas almas. Deus, pois, confirma  ou seja, declara que o seu amor para conosco é muitíssimo sólido e verdadeiro, visto que não poupou a Cristo, seu próprio Filho, por amor aos ímpios. Nisto se manifestou o seu amor, ou seja: sem ser influenciado pelo nosso amor, ele nos amou mesmo antes de usar seu próprio beneplácito em nosso favor, como João mesmo nos diz [Jo 3.16]. O termo pecadores (como em muitas outras passagens) significa aqueles que são completamente corruptos e entregues ao pecado - veja-se João 9.31: "Deus não ouve a pecadores", ou seja: o ímpio e o culpado. A "mulher pecadora" significa uma mulher que vivia vida vergonhosa [Lc 8.37]. Isto surge mais claro ainda a partir do contraste que se segue imediatamente, ou seja: Muito mais agora, sendo justificados por seu sangue. Visto que ele contrasta estes dois elementos, e faz referência àqueles que são libertados da culpa de seu pecado, como sendo justificados, segue-se necessariamente que o termo pecadores significa aqueles que são condenados por suas ações perversas.

A súmula de tudo consiste em que, se Cristo obteve justiça para os pecadores, pela instrumentalidade de sua morte, então, agora, os protegerá muito mais da destruição assim que são justificados. Na última cláusula ele aplica à sua própria doutrina a comparação entre o menor e o maior. Não teria sido suficiente que Cristo houvesse uma vez por todas granjeado a salvação para nós, se porventura não a mantivesse ilesa e segura até ao fim. Isto é o que o apóstolo agora assevera, declarando que não temos razão para temer que Cristo não conclua a concessão de sua graça destinada a nós antes que tenhamos chegado ao nosso predeterminado fim. Tal é a nossa condição, visto que ele nos reconciliou com o Pai, ou seja: que ele propôs estender sua graça a nós de forma mais eficaz e fazê-la aumentar dia a dia.

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