Quando Vivíamos na Carne - João Calvino

Porque, quando vivíamos na carne (Rm 7.5,6) Paulo mostra, usando de um contraste ainda mais vivido, quão equivocados estão os que são zelosos pela lei, pretendendo manter os crentes sob o domínio dela. Enquanto o ensino literal da lei estiver em vigor e dominar, sem qualquer conexão com o Espírito de Cristo, a concupiscência da carne não será refreada; ao contrário, crescerá cada vez mais. Segue-se deste fato que o reino da justiça só será estabelecido quando Cristo emancipar-nos da lei. Ao mesmo tempo, Paulo nos lembra aquelas obras que fazem parte de nossa vida prática, quando somos emancipados da lei. Portanto, enquanto o homem estiver sob o jugo da lei, não obterá nada para si, senão a morte que procede do contínuo pecar. Se a servidão da lei só produz pecado, então a liberdade, que é o oposto de escravidão, se inclina para a justiça. Se a escravidão nos conduz à morte, então a liberdade nos conduz à vida. Todavia, atentemos bem para o sentido das palavras de Paulo.

Ao descrever nossa condição durante o tempo em que estivemos sob o domínio da lei, o apóstolo afirma que estivemos na carne. Disto entendemos que o único benefício obtido por todos aqueles que se acham debaixo da lei consiste em que seus ouvidos ouvem um som externo, mas que não produz qualquer fruto ou efeito, visto que são intimamente destituídos do Espírito de Deus. Devem, pois, permanecer completamente pecaminosos e perversos, até que um remédio muito mais excelente surja para a cura de sua enfermidade. Note-se também a expressão comum da Escritura: estar na carne - o que significa ser dotado somente com os dons naturais, sem a graça particular com que Deus favorece seu povo eleito. Se este estado de vida é totalmente pecaminoso, é evidente que nenhuma parte de nossa alma é inerentemente pura, e que o único poder que nosso livre-arbítrio possui é o de exteriorizar suas vis paixões como dardos lançados em todas as direções.

As paixões pecaminosas postas em realce pela lei. Isto é, a lei excitou vis paixões em nós, as quais produziram seus efeitos em todo o nosso ser. Na ausência do Espírito, nosso Mestre íntimo [=interior Magister] a obra da lei consiste em inflamar ainda mais os nossos corações, de tal forma que nossos desejos libidinosos irrompem em borbotões. Deve-se notar que Paulo, aqui, compara a lei com a natureza corrupta do homem, cuja perversidade e concupiscência irrompem com grande fúria, por mais que seja ele detido pelos freios da justiça. Ele ainda adiciona que, enquanto nossas paixões carnais se agitam sob a lei, outra coisa não produzem senão frutos de morte. Paulo assim prova que a lei, por sua própria natureza, era destrutiva. Segue-se que aqueles que, com ímpeto, preferem a escravidão que resulta em morte são completamente loucos.

 Agora, porém, desvencilhados da lei. Ele dá
seguimento a seu argumento a partir de opostos. Se a coibição da lei surtiu tão pouco efeito em subjugar a carne que nos despertava antes a pecar, então devemos desvencilhar-nos da lei para que deixemos de pecar. Se somos libertados da servidão da lei a fim de podermos servir a Deus [livremente], então aqueles que derivam deste fato sua licença para pecar, e aqueles que nos ensinam que devemos soltar as rédeas e nos entregarmos à luxúria, também estão equivocados. Note-se, pois, que só somos libertados da lei quando Deus nos livra de suas rígidas exigências e de sua maldição, dotando-nos com o Espírito Santo a fim de podermos trilhar seus santos caminhos.

Estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos.
Esta é uma parte explicativa, ou, antes, sugere de que forma fomos feitos livres. A lei, no que nos diz respeito, é revogada a fim de não mais sermos oprimidos sob seu fardo insuportável e não sermos encontrados sob seu inexorável rigor a subjugar-nos com sua maldição.

Servimos em novidade de espírito. Paulo contrasta espírito e letra. Antes de nossa vontade ser conformada com a vontade de Deus por meio da operação do Espírito Santo, não encontramos nada na lei senão a letra externa. Esta, é verdade, refreia nossas ações externas, porém não pode refrear um mínimo sequer da fúria de nossa concupiscência. Ele atribui ao Espírito nossa novidade, visto que ela sucede ao velho homem, assim como a letra é denominada de caduca, já que ela perece ao ser renovada pelo Espírito.

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